domingo, junho 10, 2007

Tudo aquilo que você não deixa pra trás




Recentemente tive uma discussão com um amigo sobre o câncer tenebroso do capitalismo (ou talvez um dos muitos, na opinião dele), em uma conversa curta e trivial.

Ele ia - a essa altura imagino que já foi - viajar, e me perguntou o que eu - supostamente um grande viajante - levava em minhas viagens. Livros, toalha, dinheiro, celular. Sim, roupa, claro. Palavras-cruzadas, mas isso eu compro no aeroporto. Minhas fiéis havaianas, um par de tênis, um par de sapatos. E meu fiel e aguerrido mp3 player.

Sobre este último ítem ele fez um comentário que me foi inusitado: "não preciso disso". "Mas como, você não ouve música?". "Não assim". "Mas deveria ouvir, é uma boa". "Não vou comprar uma coisa que não preciso, é esse o péssimo costume de comprar coisas que você não precisa e torná-las indispensáveis."

Dos livros que li ultimamente, três me brindaram com metáforas perfeitas, se é que isso existe. Se existir - o que implica em dizer que na verdade são traduções de mensagens tênues - elas o são, se não, digamos que elas são adequadas pra caramba.

As três são bem simples. Primeiro aquela que dá o título ao Apanhador no Campo de Centeio (J.D. Salinger), que não vou explicar, por não estar convencido que sabê-la de antemão estragaria ou não o livro. Na dúvida, no spoilers.

A segunda é a dualidade filosófica contemporânea entre o leve e o pesado, da Insustentável Leveza do Ser (Milan Kundera), que eu acho que até já mencionei aqui. Em curtos traços, segundo Kundera, a filosofia já enveredou por todo tipo de opostos para analisar a realidade. Desde os elementos (fogo, água, vento, etc) dos pré-socráticos, até a ética e moral, bem e mal, preto e branco, etc, etc etc. E hoje a grande questão recairia sobre o confronto entre o leve - uma vida sem responsabilidades, dionisíaca, hedonista, superficial - e o pesado - uma vida com preocupações, objetivos, responsabilidades e profundidade. Enquanto a leveza do ser se mostra insustentável, como o título denuncia, há de se manter um equilíbrio.

A terceira é de um livro que ainda nem li inteiro. Desde que ganhei ele está emprestado, só li as primeiras cinco folhas, ou mais exatamente, até esta bendita metáfora. N'A Paixão segundo G.H., Clarice Lispector discorre sobre o que ela chama de "A terceira perna". Isso seria algo com o qual você está acostumado, e subitamente se vê privado, como se tivesse uma terceira perna, com a qual fosse acostumado a andar, e então, subitamente, se tornasse um bípede atabalhoado, tropeçando pelos cantos, se perguntando como alguém consegue tolerar essa invalidez.

Imagino comigo quantas terceiras pernas nós temos. Aquela camisa velha que provavelmente nem cabe mais em você, seus ideais comunistas de um mundo melhor, um amor mal-interpretado que rende um mar de auto-complacência, os entes queridos que simplesmente um dia se vão, um desejo que você nutria com convicção mas fracassou, um blog que você acompanha religiosamente, ou uma música que fala de forma tão banal sobre todas aquelas coisas que você não consegue deixar pra trás. São sintomas, reflexos, de uma realidade apensa à sua, não eram originalmente seus, mas por uso e cotidiano, se tornam uma terceira perna cuja amputação dói e causa um sofrimento não só no instante, mas durante algum bom tempo, no qual mesmo diante da ausência da sua "perna", subsiste a lembrança, o que por si pode se constituir em uma lembrança metafuncional, um memento de uma lembrança, que serve de relicário pra que você não se esqueça que dentro dele existe uma memória.

Eu não tenho certeza se esses corpos estranhos em nossa constituição realmente são o que dizem ser. E nisso eu discordo do meu amigo sobre a importância que ele dá ao Mp3 player, assim como ao consumismo capitalista e seus fenômenos sociais congêneres. Salvo exceções extremadas - obrigado, senhor, mas eu REALMENTE não vejo utilidade pra um rifle de matar morsas, SÉRIO - todas estas coisas podem se tornar algo mais caro, quase parte de você. A dor remanescente da perda nos faz questionar se o que lateja é o vício gritando pra ser satisfeito ou é o seu ser que já não se encontra mais, nem se identifica mais sem aquele fator anexo. A linha que define o que somos nós se tornou difusa. E isso não é necessariamente ruim.

Quando nos enchemos de penduricalhos, comerciáveis ou não - sabia que eu sempre espirro três vezes? - nós crescemos. Mas passamos a depender mais, e nos sujeitamos à perda, à dor excruciante que é um dia qualquer se ver alijado de um costume, de um amigo, de uma lembrança. Sem os quais seríamos menos frágeis, mas indignos de um post de blog ou de uma canção pra se ouvir em qualquer lugar e se lembrar de casa. Já não haveria nada pra sentir saudades. E isso você leva para sempre.

7 Comments:

Anonymous Anônimo said...

que coisa, ando concordando demais com você ultimamente (quase como perder uma terceira perna? o.O).

termine o livro da clarice, po! é ótimo.

=*

10:14 AM  
Anonymous Anônimo said...

eu acho que mp3 layers são essenciais!

Também acho bacana quando alguém resolve, finalmente, retomar um blog...

galadeeeeeeeeeeeeeeeeeeenho ; )

PS.: Eu prefiro O Apanhador no campo de Centeio

2:45 AM  
Blogger Cedê Silva said...

Muito, muito, bom!

Os budistas tentam se livrar das terceiras pernas... será que "vivem" menos?

10:10 PM  
Anonymous Anônimo said...

bonito, wa. :)

(sim, eu venho aqui)

11:51 PM  
Anonymous Anônimo said...

Aconteceu comigo semana passada. Até que dá um post... vamos ver se sai.

Algum conteúdo próprio de vez em quando é bom pra variar...

11:12 PM  
Blogger cíntrica said...

Não que eu não goste dos seus Clippings - OK, talvez não muito de alguns - mas é bom voltar a ler você, exclusivamente, de novo.

9:38 PM  
Blogger Thomaz Napoleão said...

Grande post, grande.

Se existe maturidade, ela provavelmente está no equilibrio entre a preservação do passado e a construção do futuro, entre a memoria e a liberdade. Eu certamente estou longe de chegar lá. Ainda sofro muito quando preciso me desembaraçar do passado.

7:07 PM  

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